É
esta a mais antiga das festas de Nossa Senhora. Não temos uma base histórica
para o assunto da festa. Isso em nada a prejudica, porque a tradição em seu
favor é antiquíssima. Já antes do ano 430 encontramos a festa. Até os Nestorianos,
separando-se da Igreja, continuaram celebrando-a. No Ocidente é S. Gregório de
Tours († 573) o primeiro que fala da Assunção corporal de Maria ao céu. Em
Roma, o Papa Sérgio I (687-701) ordenou que se fizesse uma procissão no dia da
festa. No século X surgiram dúvidas e apareceram escritores aconselhando
cautela no assunto. Mas tinham em vista as provas históricas e não as razões
teológicas. Assentadas estas últimas, cessou o receio e hoje o mundo universo
canta, jubiloso e convicto: Assumpta est Maria in caelum, gaudet exercitus
angelorum. No Ano Santo de 1950 veio a definição desta verdade como dogma
de fé (Nota do tradutor).
A preciosa morte de Maria
Neste
dia a Igreja nos propõe a celebração de duas solenidades em honra de Maria: seu
feliz trânsito desta terra, e sua gloriosa assunção ao céu. No presente
discurso falaremos do Trânsito e, no seguinte, da Assunção de Maria. É a morte
uma pena do pecado. Ora, sendo Maria toda santa e isenta de toda mancha, parece
que não devia ser sujeita a padecer a mesma desventura dos filhos de Adão,
atingidos todos pelo veneno do pecado. Entretanto, querendo Deus fosse Maria
bem semelhante a Jesus, convinha que morresse a Mãe como tinha morrido também o
Filho. Queria o Senhor dar aos justos um exemplo da morte preciosa que lhes
está preparada e por isso determinou que morresse a Virgem, mas de uma morte
toda doce e feliz. Isto posto, entremos a considerar quanto foi preciosa a
morte de Maria.
1.
pelas graças que a acompanharam;
2.
pelo modo por que se operou.
PONTO PRIMEIRO
Prerrogativas da morte de Maria
Três
coisas costumam tornar amarga a morte: o apego à terra, o remorso dos pecados e
a incerteza da salvação. Mas a morte de Maria foi totalmente isenta dessas
amarguras, e, ao contrário, acompanhada de três belíssimas graças que a
tornaram sumamente preciosa e suave. Morreu, como sempre vivera, completamente
desapegada dos bens mundanos; morreu com suma paz de consciência; morreu na
certeza da glória eterna.
1. Maria
morreu desprendida dos bens do mundo
Não
há dúvida que o apego aos bens terrenos torna amarga e miserável a morte dos
mundanos, como diz o Espírito Santo: Ó morte, quão amargosa é a tua memória
para um homem que tem paz no meio de suas riquezas (Eclo 41,1). Mas, porque
morrem os santos desapegados das coisas do mundo, a morte não lhes é amarga,
mas doce, amável e preciosa. Isto é, na explicação de S. Bernardo, digna de
comprar-se por qualquer preço. “Bem-aventurados os mortos que morrem no Senhor”
(Ap 14,13). Quais são esses que morrem, já estando mortos? São justamente essas
almas venturosas que na hora da morte já estão desapegadas das coisas terrenas,
e só em Deus encontram todo bem, como acontecia a S. Francisco de Assis, que
dizia: Meu Deus e meu tudo!
Mas,
que alma jamais foi tão desapegada deste mundo, e tão unida a Deus, quanto a
bela alma de Maria? Foi, sem dúvida, inteiramente desapegada dos seus parentes,
pois que, desde a idade de três anos, quando as crianças têm mais afeição
aos pais e mais necessitam de seus desvelos, ela com todo valor os deixou e foi
encerrar-se no templo, para atender somente a Deus. Foi desprendida dos bens
terrenos, contentando-se de viver pobre e sustentando-se com o trabalho de
suas mãos. Igual foi seu desprezo das honras, amando a vida humilde e
abjeta, posto que descendesse dos reis de Israel, cabendo-lhe assim o competente
respeito e honra. Revelou a própria Virgem a S. Isabel da Turíngia que, quando
seus pais a deixaram no templo, ela estabeleceu no seu coração de não ter outro
pai, nem amar outro bem senão Deus.
S.
João viu Maria figurada naquela mulher vestida de sol, que tinha a lua debaixo
dos pés (Ap 12,1). Pela lua explicam os intérpretes significar-se o mundo, e
seus bens caducos e sujeitos a inconstâncias, como o é a lua. Todos estes bens,
Maria nunca os teve no coração, mas sempre os desprezou e teve debaixo dos pés.
Viveu neste mundo como solitária rola num deserto, sem afeto a coisa alguma.
Dela foi dito por isso nos Cânticos: Ouviu-se em nossa terra a voz da rola
(2,12). E em outro lugar: Quem é esta que sobe pelo deserto? (3,6). Sobre a
Virgem diz o abade Roberto: Subiste pelo deserto porque tua alma estava na solidão.
Havendo, pois, Maria vivido sempre desprendida inteiramente das coisas terrenas,
e sempre unida a Deus, não amarga, mas doce e suave devia ser-lhe a morte, por
uni-la mais estreitamente a Deus com vínculo eterno no paraíso.
2. Maria
morreu na mais doce paz do espírito
Em
segundo lugar faz preciosa a morte dos justos a paz de consciência.
São
os pecados cometidos que mais afligem e roem o coração dos pobres moribundos.
Lembrando-se que hão de comparecer dentro em pouco perante o tribunal divino,
se veem nessa extremidade rodeados por seus pecados, que os apavoram e lhes
dizem: Somos obras tuas, não te deixaremos. Assim no-lo afirma Vulgato
Bernardo. Não pôde certamente Maria ser afligida na morte por algum remorso de
consciência. Pois não fora sempre santa, pura e livre de toda a sombra de culpa
atual e original? Dela por isso foi dito: És toda formosa, minha amiga, e não
há mancha em ti (Ct 4,7). Desde que teve o uso da razão, isto é, no primeiro
instante da sua imaculada Conceição no seio de S. Ana, começou a Virgem a amar
o seu Deus com todas as veras. E assim continuou sempre, adiantando-se cada vez
mais na perfeição e no amor em toda a sua vida. Todos os seus pensamentos,
desejos e afetos, só a Deus tinham por objeto. Não disse palavra, não fez
movimento, não deu uma vista de olhos, não respirou, que não fosse por Deus e
para glória sua, sem jamais separar-se um momento do amor divino. Ah! que na
hora feliz de sua morte lhe apareceram em torno do leito todas as suas belas
virtudes, praticadas na vida: aquela sua fé tão constante; aquela sua confiança
em Deus tão amoroso; aquela paciência tão forte no meio de tantas penas; aquela
humildade no meio de tantos privilégios; aquela modéstia; aquela mansidão; aquela
piedade para com as almas; aquele zelo da divina glória. Sobretudo apresentou-se-lhe
aquela perfeita caridade para com Deus, ao lado daquela total conformidade com
a vontade divina. Todas, em suma, lhe apareceram e, consolando-a, diziam-lhe:
Somos obras vossas e não vos deixaremos. Nossa Senhora e nossa Mãe, nós somos
filhas do vosso belo coração. Agora que vós deixais esta miserável vida, não
queremos deixar-vos. Iremos também e formarvos-emos eterno cortejo de honra no
paraíso, onde por meio de nós assentareis como Rainha de todos os anjos e de
todos os homens.
3. Maria
morreu sem cuidados por sua salvação
Em
terceiro lugar faz doce a morte a segurança da eterna salvação. A morte
chama-se trânsito, porque por ela se passa de uma vida breve a uma vida eterna.
Por isso é grande o espanto daqueles que morrem com dúvida da sua salvação, e
se avizinham do grande momento com justo temor de uma morte eterna. Pelo
contrário, é muito grande a alegria dos santos em acabar a vida. Pois com firme
confiança podem esperar pela posse de Deus no céu. Uma religiosa de S. Teresa,
quando o médico lhe deu a nova da morte, teve tanta alegria, que lhe disse: E
como, Sr. Doutor, me dais uma tão feliz notícia e não me pedis as alvíssaras?
S. Lourenço Justiniano, estando próximo à morte, e vendo as lágrimas com que o
choravam os familiares, disse-lhes: Ide chorar em outra parte! Se quereis estar
aqui comigo, deveis alegrar-vos como eu me alegro, porque vejo abrir-se a porta
do céu, para unir-me com o meu Deus. Assim igualmente um S. Pedro de Alcântara,
um S. Luís Gonzaga e tantos outros santos, à notícia da morte, prorromperam em
vozes de júbilo e de alegria. Faltava-lhes, contudo, a certeza da graça divina,
nem estavam seguros da própria santidade, como o estava Maria. Mas que júbilo
sentiria a Divina Mãe, ao receber a notícia da sua morte? Ela, tão certa e
segura de possuir a graça divina, especialmente depois que o arcanjo S. Gabriel
lhe assegurou que era cheia de graça e possessora de Deus! (Lc 1,30). Maria
estava também ciente das chamas de divino amor, em que lhe ardia o coração
continuamente. Mais. Na sentença de Bernardino de Busti, ela, por singular
privilégio não concedido a nenhum outro santo, amava e estava sempre amando a
Deus, em cada instante de sua vida. E isso com tanto ardor, que, segundo S.
Bernardo, só por um contínuo milagre lhe foi possível viver no meio de tão vivo
incêndio de amor.
De
Maria já se disse nos Cânticos: Quem é esta que sobe pelo deserto, como uma
varinha de fumo, cheia de aromas de mirra, e de incenso, e de toda a casta de
polilhos odoríferos? (3,6). A sua total mortificação, figurada na mirra; as suas
fervorosas orações, expressas pelo incenso; e todas as suas santas virtudes, unidas
à sua perfeita caridade para com Deus, acendiam nela intenso incêndio.
No
meio deles sua bela alma, toda sacrificada e consumida pelo amor divino, se eleva
continuamente a Deus qual varinha de fumo, que de todas as partes trescalava
suavíssimo perfume. A nuvem que sobe és tu, Maria, que exalaste para o
Altíssimo a suavíssima fragrância das virtudes, diz Roberto, abade. E com maior
expressão ainda, disse o Pseudo-Jerônimo: Foi Maria essa varinha de incenso,
porque se consumia como um holocausto, inteiramente devorada pelo fogo do amor
divino, e exalava sempre suavíssimo olor. E qual viveu a amante Virgem, tal
morreu. Assim como o amor divino lhe deu a vida, assim lhe deu também a morte.
Pois, como dizem comumente os doutores e os Santos Padres, ela morreu não de
outra enfermidade, senão de puro amor. Ou Maria não devia morrer ou só morrer
de amor, afirma um escritor sob o nome de S. Ildefonso.