“Aqui está quem é maior do que Salomão”
A
Eucaristia, presença real do Senhor
Agora irei
retomar as considerações iniciais sobre a Eucaristia na História da Salvação,
mas com o olhar voltado já para o presente e o futuro. “O mistério cristão tem
sempre uma dimensão tripla: é memória do passado, é presença da graça e é
espera da realização eterna” (São Tomás). Por isso, ele chama à Eucaristia o
“sagrado convívio, no qual se recebe a Cristo; celebra-se a memória da sua
Paixão (passado), a alma enche-se de graça (presente) e a nós é concedido o
penhor da glória futura” (Antífona “O sacrum convivium”).
Consideraremos
a Eucaristia como presença do Senhor na Igreja.
1. “Eis a
morada de Deus no meio dos homens”
Num
dia de verão, celebrei a Missa num pequeno mosteiro de clausura. No trecho
evangélico, lia-se o capítulo 12 de S. Mateus. Nunca mais esquecerei a
impressão que me causaram as palavras de Jesus: “Agora, aqui está quem é maior
do que Jonas... Agora, aqui está quem é maior do que Salomão”. Foi como se
naquele momento as tivesse ouvido pela primeira vez. Compreendia que naqueles
dois advérbios “agora” e “aqui” significavam verdadeiramente agora e aqui, ou
seja, naquele momento e naquele lugar, não somente no tempo em que Jesus vivia
sobre a terra, há já muitos séculos. Tive um estremecimento que me sacudiu do
meu torpor: ali, diante de mim, estava realmente quem era mais do que Jonas, do
que Salomão, do que Abraão, do que Moisés: estava o Filho de Deus vivo e
verdadeiro! Compreendi o que significavam as palavras: “Eis que eu estarei
convosco todos os dias...” (Mt 28,20).
“Agora,
aqui está quem é maior do que Jonas... Agora, aqui está quem é maior do que
Salomão”. Querendo refletir sobre o mistério da presença real de Jesus na
Eucaristia, não encontrei palavras mais belas que estas, para começar.
A
presença eucarística revela-se-nos, como o ponto de chegada natural da
revelação bíblica sobre Deus, a reta final de um desígnio que nos revela o
verdadeiro rosto de Deus. O Deus da Bíblia é Deus-conosco, um Deus presente,
não um deus “inexistente para as coisas humanas” e inacessível, como era o deus
dos filósofos. Por isso, encontra na Eucaristia o lugar da sua manifestação
plena e definitiva. A Eucaristia é a verdadeira sarça ardente, na qual Deus
manifesta o seu nome: Javé, ou seja – segundo o genuíno significado de Is 3,14
– “Aquele que está, que está presente”.
Isaías
fala de um menino que será chamado Emanuel, isto é, Deus conosco (Is 7,14).
Acontece o fato que realiza todas estas promessas: “O Verbo fez-Se carne e
habitou entre nós” (Jo 1,14). A presença de Deus agora se manifesta numa carne
visível, palpável, que está permanentemente no meio de nós.
“Nós
ouvimos, vimos, contemplamos, tocamos o Verbo da vida!” (1Jo 1,1). Nesta linha
de pretéritos falta ainda um: comemos. E este último passo fez-se com a
instituição da Eucaristia: “Tomai, comei...”; “Quem come a minha carne tem a
vida eterna”.
A
Eucaristia é o último degrau na longa caminhada da “condescendência” de Deus:
Criação, Revelação, Encarnação, Eucaristia. “Que grande nação tem um Deus tão
próximo, como Javé nosso Deus, todas as vezes que O invocamos?” (Dt 4,7).
Diante do sacrário, podemos repetir as palavras do Apocalipse: “Eis a morada de
Deus com os homens” (Ap 21,3). A Eucaristia é memorial de um acontecimento – a
Páscoa – mas é também presença de uma Pessoa: o Verbo encarnado. “O Verbo
fez-Se carne (Encarnação), e carne fez-se
‘verdadeiro alimento’ (Eucaristia) (Jo 6).
2. “Ficai
com o que é bom”
Como enfrentar o mistério da presença real
de Jesus na Eucaristia?
Vêm-nos logo à memória as variadíssimas
teorias e discussões existentes acerca disso, as divergências entre católicos e
protestantes, entre latinos e ortodoxos, somos tentados a pensar que é
impossível dizer ainda alguma coisa acerca deste mistério que possa edificar a
nossa fé e aquecer o nosso coração, sem desembocarmos inevitavelmente na
polêmica interconfessional. Mas esta é precisamente a obra maravilhosa que o
Espírito Santo vai realizando nos nossos dias entre todos os cristãos. Ele
impele-nos a reconhecer quanta parte tinham, nas nossas disputas eucarísticas,
a presunção humana de poder encerrar o mistério numa teoria ou, até, numa
palavra, como também a vontade de prevalecer sobre o adversário.
A via do ecumenismo eucarístico é a via do
reconhecimento recíproco, a via cristã da ágape, ou seja, da partilha cristã. Trata-se
de reunir todos os aspectos positivos e os valores autênticos que existem em
cada uma das tradições, de modo a constituir um “montão” de verdades comuns que
comece a atrair-nos para a unidade. É a síntese que devemos começar a fazer;
devemos passar, como por um crivo, as grandes tradições cristãs, para acolher
de cada uma, como nos exorta o apóstolo, “aquilo que é bom” (1Ts 5,21). Neste
colocar em comum, acontece que aquilo que é de Deus cresce, e o que é do homem
diminui.
3. Uma presença
real, mas escondida: a tradição latina
Examinaremos
as três tradições eucarísticas – a latina, a ortodoxa e a protestante.
Na visão
da teoria latina, o centro indiscutível da ação eucarística, da qual deriva a
presença de Cristo, é o momento da consagração. Nele, Jesus age e fala em
primeira pessoa. A teologia latina recolhe, nisto, todo um filão da tradição
patrística. Santo Ambrósio escreve: “Este pão é pão antes das palavras
sacramentais; mas, ao intervir a consagração, o pão torna-se carne de Cristo...
Com que palavras se fez a consagração, e de quem são essas palavras? Do Senhor
Jesus! ...É pois a palavra que opera (conficit) o sacramento... Vês como é
eficaz (operatorius) a fala de Cristo? Antes da consagração não havia corpo de
Cristo, mas depois da consagração, eu digo-te que já existe o corpo de Cristo.
Ele diz e a coisa acontece, Ele ordena e a coisa se afirma” (Sl 33,9).
Podemos
falar, na visão latina de um realismo cristológico. Cristológico, porque toda a
atenção aqui se volta para Cristo; Cristo é tanto o objeto da Eucaristia como o
sujeito da Eucaristia, Aquele que é realizado na Eucaristia e Aquele que realiza
a Eucaristia. Realismo, porque este Jesus não é visto presente no altar
simplesmente num sinal ou num símbolo, mas em verdade e com sua realidade.
“Salve, corpo verdadeiro, nascido de Maria Virgem, que realmente sofreste e
foste imolado na cruz pelos homens, e de cujo Lado aberto brotou sangue e
água...” (Cântico Ave verum, Papa Inocêncio IV).
O
concílio de Trento concebe a presença real usando três advérbios: vere,
realiter e substantialiter. Jesus está presente verdadeiramente, não só em
imagem, ou em figura; está presente realmente, não só subjetivamente, para a fé
dos crentes; está presente substancialmente, ou seja, segundo a sua realidade
profunda que é invisível aos sentidos, e não segundo as aparências que
continuam a ser as do pão e do vinho.
Poderia
haver o perigo, é verdade de se cair num “cru” realismo, ou num realismo
exagerado, como se o corpo e o sangue de Cristo estivessem presentes no altar
“sensivelmente e fossem, em verdade, tocados e partidos pelas mãos do sacerdote
e mastigados pelos dentes dos fiéis” (A. Schonmetzer). Mas existe na Igreja o
remédio para este perigo. Santo Agostinho esclareceu que a presença de Jesus
acontece “in sacramento”. Não é uma presença física, mas sacramental, mediada
por sinais que são o pão e o vinho. Neste caso, porém, o sinal não exclui a
realidade, mas torna-se presente, no único modo com que Cristo ressuscitado que
“vive no Espírito” (1 Pd 3,18) pode torna-Se presente entre nós, enquanto
vivemos ainda no corpo.
São
Tomás de Aquino diz a mesma coisa, ao falar de uma presença de Cristo “segundo
a substância” sob as espécies do pão e do vinho. Jesus se torna presente na
Eucaristia com a sua realidade verdadeira e profunda, que pode ser compreendida
só mediante a fé: “Os olhos, o tato, o gosto, tudo aqui perde valor; fica só a
fé na tua palavra” (Adoro te devote, S. Tomás). São Tomás, ao retomar Sto.
Agostinho, afirma que, na Eucaristia, Cristo está presente através das
espécies, ou figuras: “Adoro-Te devotamente, ó Deus escondido, que sob estas
figuras verdadeiramente Te escondes”. Assim se ultrapassa o perigo do realismo
“cru”. Cristo – “não o quebra nem o parte todo aquele que o consome, pois
recebe Cristo inteiro” (S. Tomás).
Cristo
está presente na Eucaristia num modo único que não tem correspondente noutro
lugar. Nenhum adjetivo, por si só, é suficiente para descrever essa presença;
nem sequer o adjetivo “real”. Real vem de res (coisa) e significa como uma
coisa ou objeto. Ora Jesus não está presente na Eucaristia como uma “coisa” ou
um objeto, mas como uma pessoa. Se se quer atribuir um nome a esta presença,
seria melhor chamar-lhe presença “eucarística”, porque se realiza somente na
Eucaristia.
4. A ação
do Espírito Santo: a tradição ortodoxa
Na tradição ortodoxa é posta no devido
relevo a ação do Espírito Santo na celebração eucarística.
Depois do Concílio Vaticano II, todos os
novos cânones trazem uma dupla invocação do Espírito Santo: uma sobre os dons,
antes da consagração, e outra sobre a Igreja, depois da consagração.
As liturgias orientais atribuíram sempre a
realização da presença real de Cristo no altar a uma operação do Espírito
Santo, até ver, como é sabido, na epiclese, e não na consagração, o momento
preciso em que cristo começa a estar presente.
Há aqui um olhar amplo e penetrante em
toda a História da Salvação que ajuda a descobrir uma dimensão nova do mistério
eucarístico. Partindo das palavras do símbolo niceno-constantinopolitano que
definem o Espírito Santo “Senhor”, e “Aquele que dá a vida”, “que falou pelos
profetas”, amplia-se a perspectiva até traçar uma verdadeira e própria
“história” do Espírito Santo. Ele esteve sempre em ação quando se tratou de dar
a vida. Exemplos: Adão; Jesus; Pentecostes. De cada vez é o Espírito que obriga
a dar um salto de qualidade à vida e à História da Salvação.
A Eucaristia leva a cumprimento esta série
de intervenções prodigiosas. Verdadeiramente – como disse o próprio Jesus
falando da Eucaristia – “é o Espírito que dá a vida” (Jo 6,63). “Ao sobrevir o
Espírito Santo, nós cremos que o pão e o vinho recebem uma espécie de unção de
graça. E a partir daí acreditamos que eles são o corpo e o sangue de Cristo,
imortais, incorruptíveis, impassíveis e imutáveis por natureza, como o próprio
corpo de Cristo na ressurreição” (Teodoro de Mopsuéstia).
É importante, porém ter em conta uma
coisa: o Espírito Santo não age separadamente de Jesus, mas dentro da palavra
de Jesus. D’Ele disse Jesus: “não falará em seu nome, mas dirá o que escutou...
o Espírito da Verdade manifestará a minha glória porque vai receber daquilo que
é meu e vo-lo interpretará” (Jo 16, 13-14). É por isso que não se deve separar,
nem muito menos contrapor as palavras de Jesus (“Isto é o meu Corpo”) das
palavras da epiclese (“Espírito Santo santifique estes dons para que se
convertam no corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo). A eficácia vem
certamente do Espírito (não do sacerdote, nem da Igreja), mas essa eficácia
exerce-se dentro da palavra de Cristo e através dela. Jesus diz: “Isto é o meu
Corpo”, ou seja, Quero que este pão seja meu Corpo! E o Espírito Santo cumpre,
todas as vezes, esta vontade de Jesus.
Embora a eficácia que torna Jesus presente
sobre o altar não venha da Igreja, ela não acontece sem a Igreja. Ela é o
instrumento vivo, através do qual e juntamente com o qual o Espírito
opera.
5. A
importância da fé: a espiritualidade protestante
A tradição latina colocou em evidência
“quem” está presente na Eucaristia, Cristo; a tradição ortodoxa colocou em
evidência “por quem” é operada a sua presença, pelo Espírito Santo; a teologia
protestante coloca em evidência “sobre quem” opera essa presença; por outras
palavras, sob que condições o sacramento opera, de fato, em quem o recebe, o
que significa. Estas condições são diversas, mas resumem-se numa só palavra: a
fé.
Trata-se no fundo, de descobrir o
significado profundo daquela exclamação que a liturgia faz ressoar no final da
consagração e, outrora, recordemo-lo, estava inserida inclusive no centro da
fórmula da consagração, como que a sublinhar que a fé é parte essencial do
mistério; Mysterium fidei, mistério da fé!
A fé não “faz”, apenas “recebe” o
sacramento. Só a palavra de Cristo repetida pela Igreja e tornada eficaz pelo
Espírito Santo “faz” o sacramento. Mas que aproveitaria um sacramento “feito”,
mas não “recebido”? A propósito da Encarnação, homens como Orígenes, Sto.
Agostinho, São Bernardo disseram: “Que me aproveita a mim que Cristo tenha
nascido uma vez de Maria em Belém, se não nasce também, pela fé, no meu
coração?”. A mesma coisa se deve dizer da Eucaristia: que me aproveita a mim
que Cristo esteja realmente presente sobre o altar, se Ele não está presente
para mim?
A fé é necessária para que a presença de
Jesus na Eucaristia seja, não só “real”, mas também “pessoal”, isto é, de
pessoa para pessoa. Uma coisa é “estar”, e outra “estar presente”. A presença
supõe alguém que está presente e alguém diante do qual está presente.
Esta dimensão subjetiva e existencial da
presença eucarística não anula a presença objetiva que precede a fé do homem,
antes a supõe e valoriza. Lutero que exaltou tanto o papel da fé, também
sustentou com grande vigor a doutrina da presença real de Cristo no sacramento
do altar. “Não posso entender as palavras “Isto é o meu Corpo”, diferentemente
de como soam... Perante palavras tão claras, não admito perguntas; rejeito o
raciocínio e a sã razão humana... Deus está acima de qualquer matemática e é
preciso adorar com espanto a Palavra de Deus” (Lutero).
“Achais que é tempo de habitardes
tranqüilos em casas confortáveis enquanto o Templo está em ruínas?” (Ag 1,4).
Parece-me ouvir ainda, dirigido a nós
cristãos, aquele lamento de Deus: Parece-vos que é a altura de andardes
tranqüilos, cada um contente com a sua “Igreja”, enquanto o corpo do meu Filho
está ainda dividido? Devemos aceitar a advertência que aqui está para nós e
aprender a “esperar-nos” uns aos outros para a Ceia do Senhor e a partilhar com
todos as riquezas da própria tradição, sem julgar que se tem tudo e desprezar
as riquezas dos outros.
6. Sentimento
de presença
A fé
na presença real é uma grande coisa, mas não basta; pelo menos a fé entendida
numa certa maneira. Não basta ter uma ideai exata, profunda, teologicamente
prefeita da presença real de Jesus na Eucaristia. Porque só “conhece”, em
sentido bíblico, uma coisa, quem faz a experiência dessa mesma coisa.
São
Gregório Niceno fala de “um sentimento de presença” que se tem quando alguém é
atingido pela presença de Deus, quando tem uma certa percepção (não só uma
idéia) de que Ele está presente. Não se trata de uma percepção natural; é fruto
de uma graça que opera como que uma ruptura de nível, um salto de qualidade.
Existe uma analogia muito grande com aquilo que acontecia quando, depois, da
Ressurreição, Jesus Se deixava conhecer por alguém. Era algo de improviso que,
de repente, mudava completamente o estado de uma pessoa.
Algo
de semelhante acontece no dia em que um cristão, depois de receber tantas vezes
Jesus na Eucaristia, finalmente, por um dom da graça, O “reconhece” e
compreende a verdade daquelas palavras: “Aqui está quem é maior do que
Salomão!”. De uma experiência como essa nasceu o Renovamento carismático no
seio da Igreja Católica. Alguns jovens católicos americanos tinham ido passar o
fim de semana em uma casa de retiros. À noite encontravam-se na capela diante
do SS.mo Sacramento, quando, de repente, aconteceu uma coisa singular, que um
deles, depois, descreveu assim: “O temor do Senhor começou a passar por entre
nós; uma espécie de terror sagrado impedia-nos de levantar os olhos. Ele estava
ali, presente pessoalmente, e nós tínhamos medo de não agüentar o seu amor
imenso. Adoramo-lo, descobrindo pela primeira vez o que significa adorar. Fizemos
uma experiência fervorosa da terrível realidade e da presença do Senhor. Desde
então compreendemos, com uma clareza nova e direta, as imagens de Javé que, no
monte Sinai, troveja e explode com o fogo do próprio ser; compreendemos a
experiência de Isaías e a afirmação segundo a qual “o nosso Deus é um fogo
devorador”. Este temor sagrado era, de algum modo, o mesmo que amor, ou pelo
menos era assim compreendido por nós. Era algo de sumamente amável e belo,
embora nenhum de nós tenha visto alguma imagem sensível. Era como se a
realidade pessoal de Deus, esplêndida e luminosa, tivesse vindo àquela capela,
enchendo ao mesmo tempo a ela e a nós” (R. Martin)
7. A
nossa resposta ao mistério da presença real
Da fé
e do “sentimento” da presença real, deve brotar espontaneamente a reverência e,
até, a ternura para com Jesus sacramentado.
São
Francisco enternece-se diante de Jesus sacramentado, como em Greccio se
enternecia diante do Menino de Belém: vê-O assim, confiado aos homens, tão
inerte, tão humilde: tão humilde, sobretudo. Para ele trata-se sempre do mesmo
Jesus vivo e concreto, nunca de uma abstração teológica. “Faço isto – escreveu
no seu testamento – porque eu, do Altíssimo Filho de Deus, nada vejo
corporalmente neste mundo, senão o seu santíssimo corpo e sangue”.
A
Eucaristia é a maior responsabilidade da Igreja na História.
Outrora,
nos primeiros séculos do cristianismo, estava em vigor a chamada “disciplina do
arcano”. Não se devia falar facilmente e de ânimo leve da Eucaristia, e muito
menos mostrá-la a toda a gente. Esta atitude era a expressão de um sentimento
de veneração e estupefação diante de tanta proximidade de Deus. “Arcano” vem de “arca”, e esta de arcere, que
significa manter afastado, esconder, proteger de olhares profanos. Por isso,
nas inscrições e nas pinturas, a Eucaristia era dissimulada perante os pagãos
mediante o símbolo do peixe e de outros símbolos. Chegou a hora de restaurar a
disciplina do arcano. Não nas formas, mas no espírito. Hoje o perigo não
consiste tanto em que a Eucaristia seja profanada (infelizmente isso também
acontece), mas sim que seja banalizada, reduzida a algo de “comum”, que se pode
tratar com muita desenvoltura e leviandade.
Os sacerdotes são os “guardiões” encarregados pela Igreja e são eles que
estão mais expostos ao risco da rotina, ao risco que se trata de Deus, e que
Deus deve ser adorado. Quando se trata de Deus, a confiança deve ser sempre
acompanhada pela reverência.
Há muitos
pequenos sinais pelos quais se afere como uma comunidade cristã sente Jesus
presente nela: tolhas sempre limpas, uma flor, porventura uma só, mas sempre
fresca, uma lamparina bem cuidada... Convém não desprezar facilmente os sinais
externos. Se o Filho do Homem não desdenhou manifestar o seu amor por nós
através de sinais, como, por exemplo, os sinais eucarísticos, por que
haveríamos nós de ter receio de manifestar-lhe também o nosso amor através de
sinais? É claro que Jesus prefere os sentimentos do coração aos gestos
corporais; mas nós é que precisamos dos gestos corporais para suscitar e
exprimir os sentimentos do coração. A premura e a delicadeza com que o
Santíssimo Sacramento é tratado na Igreja é o termômetro para medir a fé e a
piedade do sacerdote e da comunidade que nela se reúne.
Alguém
que não acreditava na presença real disse: “Se eu pudesse acreditar que ali,
sobre o altar, está realmente Deus, creio que cairia de joelhos e nunca mais me
levantaria”. É possível estar, com o coração, em adoração ao SS.mo Sacramento,
enquanto as nossas mãos trabalham, absolvem, escrevem. A vida de cada cristão
deve estar orientada pra o sacrário. Jesus disse que onde está o nosso tesouro,
aí estará também o nosso coração (Mt 6,21). Mas o nosso maior tesouro neste
mundo (“o tesouro escondido no campo”) é precisamente Jesus eucarístico. Pois
que lá esteja sempre o nosso coração, para lá regresse depois do repouso da
noite, que no sacrário coloque a sua morada.
É
muito importante cultivar o recolhimento, estar presente no presente. A
presença exige, do outro lado, presença. Se Deus é “aquele que está”, o homem é
aquele que “não está”, que vive fora, afastado, “numa região longínqua”. “Tu
estavas comigo, mas eu não estava contigo!” (Sto. Agostinho). Para encontrar
Jesus no sacramento, é preciso encontrá-lo em nós mesmos.
Quando
os discípulos de Emaús “reconheceram” o Senhor ao partir do pão; imediatamente,
sem prensar que “já era tarde” correram a dizê-lo aos outros discípulos que
tinham ficado em Jerusalém. Todo aquele que reconheceu verdadeiramente Jesus na
Eucaristia torna-se espontaneamente apóstolo da presença real. A fé leva à
experiência, e a experiência ao testemunho.
Lembremo-nos
que a presença real de Jesus no meio de nós não é apenas um dom, mas também uma
responsabilidade. Naquele dia, Jesus disse: “A rainha do sul levantar-se-á
contra esta geração e condená-la-á. Porque ela veio de uma terra distante para
ouvir a sabedoria de Salomão. E aqui está quem é maior do que Salomão!”.
A Eucaristia, nossa santificação. Cantalamessa, Raniero, Paulus, São
Paulo, pp. 113-136 - Resumido por Edilma Santos – Assistente Geral do
Desenvolvimento Integral