“Se não beberdes o sangue do Filho do Homem...”
A Eucaristia, comunhão no sangue de Cristo
Continuamos a refletir neste capítulo sobre o tema: “AEucaristia faz a Igreja mediante a comunhão”. Falávamos até aqui da comunhão em
geral... Agora quero destacar a nossa atenção num aspecto especial dela: a comunhão
com o sangue de Cristo.
Um dia uma mulher me entregou um bilhete, no final da Santa
Missa: “Tomai, todos, e bebei, este é o cálice do meu sangue”. Por que é que
nós não podemos beber também o Sangue de Cristo, como Ele nos pediu? Percebi
que o pedido nascia de um desejo real pelo sangue de Cristo, não de um espírito
de contradição, e que era acompanhada de uma profunda humildade e amor à
Igreja.
Queremos com esta catequese encorajar a prática da comunhão
sob as duas espécies.
1. A comunhão sob as duas espécies
Dados históricos e teológicos: Jesus instituiu a Eucaristia
no sinal do pão e do vinho (Jo 6,53.55). Ao instituir a Eucaristia disse:
“Tomai e comei... Tomai, todos, e bebei”. Não disse: “alguns”, ou “quem
quiser”, mas sim “todos”. São Paulo também certifica-nos isso (1Cor 10,16).
Os Padres da Igreja também falavam bastante do sangue nas
catequeses eucarísticas. “Se mostrardes ao Maligno a língua embebida no sangue
ele não poderá resistir; se lhe mostrares a boca tingida de púrpura, fugirá
imediatamente como uma fera amedrontada. Queres conhecer a força deste sangue?
Repara donde ele brotou: do alto da cruz, do Lado do Senhor” (S. João
Crisóstomo).
Todo o amor e a reverência dos primeiros cristãos para com
o sangue de Cristo transparece do modo como iam recebê-lo. “Depois de haveres
comungado o corpo de Cristo vai receber o cálice do seu sangue. Não estendas as
mãos, mas inclina-te tomando o sangue de Cristo, diz Amém em sinal de adoração
e de veneração, e santifica-te tomando o sangue de Cristo” (S. Cirilo de
Antioquia)
Hoje Notamos que nos afastamos da fisionomia original... Diversos
fatores contribuíram para fazer da eucaristia o sacramento do Corpo de Cristo,
tais como, a comunhão dada aos fiéis apenas sob a espécie do pão, o culto
eucarístico fora da missa contribuiu involuntariamente para isto, a exposição,
a adoração e a bênção eucarística fazem-se apenas com a Hóstia, na festa do
Corpus Domini leva-se em procissão só o corpo de Cristo... Com o tempo, por razões de prudência, a praxe
de comungar sob as duas espécies foi sendo abandonada, e a comunhão do cálice reservada
apenas ao celebrante.
De fato, “em cada um das espécies está contido Cristo
inteiro”. Mas S. Tomás de Aquino logo explica o limite deste princípio: “É
verdade – diz ele – que em cada uma das duas espécies está contido o Cristo
todo, mas segundo razões diversas. De fato, sob o sinal do pão, o corpo de
Cristo está presente ‘em força do sacramento’, isto é, em força das palavras de
Cristo, ao passo que o sangue está presente só ‘em força da natural
concomitância’, isto é, em força do fato pelo qual, onde está um corpo vivo, lá
necessariamente está também o seu sangue.”
O inconveniente surge quando as categorias filosóficas do
momento (“real concomitância”) prevalecem sobre as categorias bíblicas, sobre a
vontade de Cristo expressa na instituição da Eucaristia.
São Tomás lembra ainda que “Este sacramento é celebrado em
memória da Paixão do Senhor; mas a paixão de Cristo é expressa melhor com o
sangue do que com o corpo, e por isso seria melhor abster-se de receber o corpo
do que de receber o sangue”. “Ora – explica o mesmo santo – nenhuma das duas
espécies é supérflua. Em primeiro lugar, porque serve para representar ao vivo
a Paixão de Cristo, na qual o sangue foi separado do corpo; em segundo lugar,
porque é conforme à índole deste sacramento que sejam oferecidos separadamente
aos fiéis o corpo de Cristo como alimento e o sangue como bebida”.
O que determinou o abandono definitivo, teórico e prático,
da comunhão no sangue de Cristo, foi como em muitos outros casos, a reação à
posição dos Reformadores protestantes. Nos dias atuais, O Concílio Vaticano II
reintroduziu a possibilidade da comunhão sob as duas espécies. A comunhão sob
as duas espécies não é só permitida, como também encorajada. “A sagrada
comunhão com maior plenitude a sua forma de sinal se for feita sob as duas
espécies” (Sacrossanctum concilium, n.º 55. E o novo Missal enumera catorze
casos em que a mesma é permitida.
Retomar a comunhão sob as duas espécies exige uma catequese
adequada que evidencie o significado do sangue de Cristo e a suscitar o desejo
dele. “Quero o pão de Deus que é a carne de Jesus Cristo, e como bebida quero o
seu sangue que é amor incorruptível!” Sto Inácio de Antioquia
2. O sangue na Bíblia: figura, acontecimento e sacramento
(Nota do Pe. Marcos: figura aqui é um acontecimento do passado que aponta para uma realidade futura. Os cristãos, e o próprio Cristo Jesus, viam nos acontecimentos passados como que uma preparação para acontecimentos futuros, dentro de uma pedagogia de revelação que Deus Pai utilizou para ir comunicando a sua verdade salvífica aos poucos, visto que os homens precisavam ser preparados para poderem ir assimilando tudo aos poucos, etc).
Tema do sangue atravessa toda a Bíblia e alcança a
Eucaristia. A efusão do sangue de Cristo aparece-nos em primeiro lugar,
profeticamente prefigurada, depois historicamente realizada e por fim,
sacramentalmente renovada na Eucaristia.
Grandes figuras do sangue de Cisto no Antigo Testamento:
sangue do cordeiro pascal (Ex 12,7.13), o sangue da aliança com o qual moisés
aspergiu o povo aspersão - (Ex 24,8), o sangue
da purificação (Lv 16,1ss). O próprio Jesus cita essas três figuras na
instituição, utilizando expressões como “memorial”, “sangue da nova aliança”,
“para remissão dos pecados”.
A catequese apostólica segue essa linha (1Pd 1,18-19; Hb
9,12) e os Padres da Igreja também. Comentando Ex 12,13 “Ao ver o sangue, Eu
passarei adiante e vos protegerei”, um deles escreve: “Tu, ó Jesus,
protegeste-nos verdadeiramente da grande ruína. Estendeste paternalmente os
braços e escondeste-nos à sombra das tuas asas, derramando sobre a terra o teu
Sangue divino em libação cruenta por amor dos homens” (antiga homilia pascal).
Todo esse conjunto de figuras chega até nós, no sacramento
da Eucaristia. Mas com uma novidade importante, que constitui precisamente a
característica do sacramento. Em lugar da realidade, o sangue, temos o sinal, o
vinho.O vinho tem afinidade com o sangue. “Ele permite evitar o horror natural
provocado pelo sangue, embora conservando a eficácia do preço da Redenção”
(Sto. Ambrósio).
A transposição sangue-vinho também dá sentido a palavra de
Jesus: “o meu sangue é verdadeira bebida”, evoca o “vinho novo”, a “embriaguez
espiritual” (Sl 23,5; 104,15), fazendo assim da Eucaristia uma antecipação do
banquete escatológico do reino (Mc 14,25). “O sangue do Senhor e o cálice da
salvação apagam a lembrança do homem velho, fazem esquecer os costumes de outrora
e afastam a tristeza acumulada no coração devido aos pecados cometidos, com a
alegria do perdão divino” (S. Cipriano)
Graças à Eucaristia nos tornamos “consanguineos de Cristo”
(São Cirilo de Jerusalém), e num sentido mais remoto, também de Maria.
O que é que há no sangue, que justifique um lugar tão
relevante na religiosidade bíblica? O sangue não interessa na Bíblia na sua
crua realidade física, mas no sentido de que significava para o homem antigo a
sede da vida, ou seja, daquilo que há de mais sagrado e precioso no
mundo. O derramamento do sangue (em Jesus é o dele mesmo, não de um
animal ou de outra pessoa) é o sinal de um amor que não tem igual (Jo 15,13).
“Não foi a morte do Filho que agradou ao Pai, mas sim a sua vontade de morrer
espontaneamente por nós” (São Bernardo).
Devemos no entanto não reduzir o sangue de Cristo a um puro
símbolo, embora de uma realidade tão grande como é o amor. O sangue de Cristo
não representa apenas uma realidade espiritual – o seu amor, a sua obediência –
; ele representa um acontecimento preciso, acontecido no tempo e no espaço:
“Cristo entrou de uma vez por todas no santuário, e não com o sangue de
carneiros e bezerros, mas com o seu próprio sangue, depois de conseguir para
nós uma libertação definitiva” (Hb 9,12). É daqui que lhe vem a sua força única
e transcendente. É sinal, mas também memorial! O sangue de Cristo atesta
que tudo foi cumprido.
3. “Todos nós bebemos de um só Espírito”
São Paulo diz que Deus predestinou Jesus para servir de
instrumento de expiação “mediante o seu próprio sangue” (Rm 3,25).
Ao levantar o cálice depois da consagração, sinto a
necessidade de proclamar mentalmente o poder do sangue de Cristo sobre as
situações de luta ou de pecado particularmente difíceis... Nada há no mundo
mais eficaz para opor à barreira ameaçadora das trevas e do mal! Se o anjo
exterminador, dizia São João Crisóstomo, vendo somente a figura do sangue nas
portas dos hebreus, receou e não entrou para ferir (Ex 12,23), quanto mais o
demônio vendo a realidade não fugirá para a longe?”
A comunhão no corpo de Cristo é já capaz de nos fazer
entrar na posse de toda a graça, se for acompanhada de fé viva no sangue de
Cristo. No entanto, a comunhão no cálice é o meio mais a adequado, estabelecido
pelo próprio Cristo, para participar nela, porque “significando-a, causa-a”,
como se diz de todos os sinais sacramentais.
Os pecados depositam-se no fundo da nossa consciência como
corpos mortos. Que alívio saber que há um jeito para nos libertarmos desses
pesos mortos que nos oprimem, e que ele está sempre à nossa disposição na
eucaristia. “O sangue de Cristo... purifica a nossa consciência das obras
mortas”(Hb 9,14). “Se todas as vezes que o sangue é derramado, é derramado para
o perdão dos pecados, devo recebê-lo sempre, para que me perdoe sempre os
pecados. Eu que peco sempre, devo sempre dispor do remédio”.
Mas o sangue de Cristo não só tira o pecado, também dá-nos
o Espírito Santo.
São João notou uma relação estreita entre o Espírito que
Jesus “expira” na cruz, e a água e o sangue que logo depois brotam do seu lado
(1Jo 5,7), tanto que escreve: “São três que dão testemunho: o Espírito, a água
e o sangue”. Não há caminho mais seguro para receber o Espírito Santo do que
comungar, com fé, no sangue de Cristo.
Que fazer para voltar a dar ao sangue de Cristo o lugar que
lhe cabe na teologia e na piedade eucarística?
Propostas:
- Comunhão sob as duas espécies;
- Cálice transparente;
- Adoração eucarística diante do Corpo e do Sangue de
Cristo, ou só perante o Sangue;
- Procissão do Corpus Domini não só com o Corpo, mas também
com o Sangue.
Obs: todas essas
práticas requerem autorizações próprias!
A Eucaristia, nossa santificação. Cantalamessa, Raniero,
Paulus, São Paulo, pp. 55-73 Resumido por Pe. Marcos Oliveira
Série: A Eucaristia, Nossa Santificação
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